Fortaleza


Nunca tinha visto algo nem ao menos parecido. Nem em fotos, nem em viagens, nem em livros de história. Diante dos olhos estava uma estrutura imensa, bruta, que parecia se impor ao cenário como o principal a ser contemplado. Ao tato, um concreto gélido e áspero. Não parecia um lugar próprio para moradia, aconchegante ou nem tão pouco familiar. Mais precisamente: assustador, pelo tamanho e pela estética. Maltratada pelo tempo, aquela construção parecia uma fortaleza indestrutível. Pelo tamanho e imponência, me perguntei quem teve tamanho empenho em construir e erguer tudo aquilo. Certamente não apenas uma pessoa, mas se eu me esforçasse mentalmente poderia até voltar no tempo para ver. Quantos anos seriam suficientes para avistar? Muitos, não era uma obra recém acabada, ou abandonada a pouco. Tinha marcas do tempo, aquele pretume da chuva que o surrou, aquele pó fino que fica nos dedos passando a mão nas paredes dali. Me esforcei mais um pouco e consegui ver naquele passado distante sombras como se fossem as silhuetas dos homens empenhando toda sua força braçal para erguer aquela obra. Eram muitos, que faziam a massa, erguiam, moldavam, empilhavam concreto.. Trabalhavam de forma pesada e continuamente, não se ouvia nem sorrisos, nem conversas. Apenas os sons de pedra sobre pedra, de força empenhada, o som dos passos para lá e para cá. Se eu pudesse lhes avisar que ninguém moraria ali, teria lhes poupado o suor, o cansaço e labor. Ergueram, dia a dia, e por algum motivo, pararam. O projeto nunca chegou a ser o que se esperou que fosse, que engenheiro ou arquiteto planejaria algo daquele tamanho para não o tornar ao menos bonito aos olhos? Creio que não era mesmo uma moradia, mas servia muito bem como abrigo.. ou melhor, como esconderijo! Eu tinha plena consciência que ali se escondiam muitos vultos, que não suportavam à ideia de sair para a luz do dia. Fui convidada a adentrar, e ali dentro parecia um templo. O deus quem era? Ainda não sabia, mas a medida que eu andava me sentia tão sufocada, e a insegurança parecia querer me invadir. Percebi que o medo era o dono dali. Os vultos, que se escondiam de qualquer um para não serem identificados, pareciam ser atraídos pela minha presença. Eu andava depressa para conhecer todos os cômodos, mas a cada cômodo que eu passava havia mais um que passava a me seguir. A voz que me levou até ali disse:
- Já vimos o bastante, tá na hora de voltar.
Tão logo disse isso e voltei à minha realidade, conseguia enxergar as cores, e a definição das coisas e não mais apenas vultos. Não precisava mais me esforçar com a mente para visualizar uma imagem por completo, eu estava de volta à realidade. E o que tinha sido aquilo então? Um sonho? Eu toquei, eu senti aquele ar que emanava medo, eu pisei naquele lugar. Eu sabia que em algum lugar aquilo existia, sabia que havia demandado tempo para ser construído, e meu único desejo é que alguém pudesse demolir, esperava que todos aqueles vultos não me seguissem novamente, e destruir me parecia ser a maneira melhor de fazê-los sumir de uma vez por todas. Mas parecia indestrutível.
- É possível? - perguntei.
- Perdão, não entendi. É possível o que? - Quem havia me guiado até lá respondeu.
- Destruir, fazer ruir tudo aquilo.. 
- Sim, que é impossível? Nada, e você sabe disso. Contudo, é uma decisão sem volta.
- Quer dizer que a decisão é apenas minha? Sim, eu quero! Mas em que lugar está aquela fortaleza?
- Em você.
Talvez foi a frase dita com mais mansidão, ternura e amor que já ouvi na vida, mas eu não podia conter as lágrimas, a verdade me fez reconhecer e me lembrar. Eu havia permitido que aquela fortaleza se erguesse em meu interior, aqueles vultos empenhados no trabalho não eram homens! Como eu não percebi ao ver? Eram minhas vivências! Eu as colocava dia após dia a erguer o meu próprio esconderijo! O medo imperava ali, e eu havia permitido isso! Permitir que aquela estrutura fosse destruída (embora eu não pudesse saber como aquilo poderia acontecer) era me livrar de uma vez por toda de todos aqueles vultos do passado que me faziam me esconder dentro de mim, era de uma vez por todas viver em liberdade: livre do medo, da insegurança, das mágoas... Eu não podia ignorar a verdade do que vi, e não podia ignorar que aquela obra toda precisava ser destruída de vez. Havia sido garantido que poderia se desfazer, bastava eu querer. Não sei quanto tempo havia se passado desde que eu havia ouvido a última resposta e ficado com o semblante mudado e imersa em meus pensamentos. Mas eu já sabia o que queria, a voz me dava tanta segurança que não havia porque não permitir o fim daquilo.
- Sim, eu quero. - respondi.
- Vamos até lá então de nov...
Nem terminei de ouvir e já estava lá novamente, eu encarava de frente a obscuridade do que havia dentro de mim, e tive que dizer diante de tudo aquilo a minha decisão. Os vultos pareciam vir em minha direção prontos a se apossar de mim novamente, e eu dessa vez podia identificá-los: o menor era a inferioridade, o mais rígido era o rancor, o sem forma era a insegurança, e o maior de todos ali era o medo. Eles estavam prestes a me tocar quando minha companhia colocou a mão em meu ombro, e eu pude sentir que sua mão era notoriamente mais aquecida do que tudo que me cercava. Me segurou firme junto a ele e foi quando eu vi aquelas ondas, era como o impacto como aquelas de ondas sonoras (embora não houvesse som) que se repercutia e fazia tudo se abalar. Abalou, estalou, rachou, e diante dos meus olhos ruiu. Pó, era tudo o que eu via e que restou, mas bastou um vento para levar tudo aquilo pra longe. As ondas de amor que fluíram daquele homem haviam sido capaz de ruir todo o meu passado e o templo imenso do medo que havia sido construído, e mesmo assim Ele não me era assustador. Me sentia leve, em paz, e completamente livre. Olhei ao redor e vi que não havia mais nada ocupando o cenário.
- No lugar de tudo aquilo, não falta alguma coisa?
E Ele então me respondeu uma verdade, que me acompanha desde aquele dia:
- Não falta nada, se eu estiver sempre aqui. É o suficiente..

Lis Guedes, fevereiro de 2015
Foto: Lis Guedes, Piraquara (Base da Jocum CCL)