À deriva


Sentia-me um barco sem rumo, e de fato eu o era. Por descuido, desleixo, não sei precisamente, o que sei é que a maré encontrou-me desancorado, e me levou. Tornei-me então apenas um amontoado de madeira rústica, grosseira, suja.. sendo jogado de um lado para o outro. Sem dono, sem nome, sem rumo, aliás, meu rumo parecia ser apenas para cada vez mais longe do cais. Os barcos pintados, revestidos, equipados, pareciam-me seguros e úteis. Que utilidade tinha eu? Nenhuma a não ser cada vez ser mais castigado pelo sol e pelo mar revolto. Não queria ser um barco como outro, não mesmo; mas havia algo que eu queria: saber pra que então alguém teve o trabalho de me elaborar, arquitetar, construir, pregar tábua sobre tábua. Para esse fim? Para que os dias de sol intenso rachassem minhas tábuas e me fizessem estalar? Para noites interruptamente tempestuosas fazendo-me apodrecer e sacudir? Se ao menos eu pudesse parar nas mãos desse inventor novamente, talvez ele faria uns reparos e me colocaria no meu lugar de utilidade. Mas parecia ser tarde demais, percebi que já não apenas estava sendo levado, mas agora minhas corrosões, os sulcos que o sol me causaram e o apodrecimento devido às chuvas me faziam afundar. Das memórias que me restam além desses longos dias de exaustão, haviam relances de algumas boas experiências que vivi. Lembro precisamente de um homem de sandálias de couro bem surradas que por vezes sentava em mim para ensinar as pessoas, de alguns sujeitos atrapalhados que pareciam não confiar nele, de suas pescarias, risadas, creio que nenhum deles se importaria em ter um barco sem uma boa tintura como eu, eu era como eles; mas eu estava longe o bastante para ser resgatado.  Era pelo menos o que eu achava até o sujeito das sandálias de couro se aproximar remando em outro barco, e exclamar:
- Te encontrei!
Creio que toda intensidade da minha frustração anterior foi superada pela minha incompreensão. Não haviam tantos barcos úteis, bons? Por que eu? Por que ele enfrentou essa distância toda apenas para levar de volta ao cais e a utilidade esse amontoado de madeira apodrecida? E mesmo sabendo que ele não ouvia meus pensamentos, parecia que falando ao vento ele me respondia:
- Não investi tanto tempo fazendo esse camarada para ele acabar assim, tem muito trabalho e utilidade para ele, como senti falta.. É tão mais fácil remar nele, sentar bem acomodado e ensinar depois...
Se é que entendi bem, com aquele homem eu tinha minha função, meu lugar, meu valor. Se barcos suspirassem, eu certamente faria aquilo naquele momento. Aquele homem respondia todas as minhas perguntas existenciais. Minha dúvida naquele momento era outra, o que me impediria de voltar a ser sem rumo, se bastou um vento para me levar anteriormente? Sei que com ele eu estava seguro, mas me amedrontava a possibilidade de ser mais uma vez levado mar à dentro sozinho. Reconhecia-me incapaz, incapaz de salvar a mim mesmo, de manter-me seguro, incapaz de sobreviver longe do dono daquelas sandálias surradas. Fomos chegando à margem, ele desceu do barco e foi me puxando pela corrente que tinha pregado em mim. Pegou a ponta daquela corrente e prendeu em um prego bem firme. Não sei se foi o mesmo prego que mais tarde furou seus pés e mãos, mas uma coisa ficou clara naquele dia: minha incapacidade pode ser bem assegurada no poder de seus cravos. Mesmo que ele não estivesse ali presencialmente por alguns instantes, a marca visível e poderosa de seus cravos poderia-me manter seguro do perigo até sua volta.

Lis Guedes, janeiro de 2015

Imagem: Lis Guedes, Lagoa de Imboassica - Macaé/RJ

11 comentários:

  1. Precisamente "aliviador".Sou sua fã garota

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  2. Nossa Lis! Lindo demais! Te admiro muito *-*

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  3. Profundo!!! Sem palavras para elogia-la!! Dele e para Ele!! Lindo!!

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  4. Lindo!! Identidade + Propósito = Eternidade JÁ!

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    1. Ilustríssimo César, você leu meu mano!! Emocionada haha

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  5. Cristianismo assim é muito bom e da mesma forma raro de encontrar... simples e objetivo, sem religiosidade, sem mi mi mi, assim como Jesus foi #seguindo.

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    1. A intenção é essa, passá-lo com a mesma naturalidade que Ele vive em nós! Obrigada, Felipe!

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    2. Somos Nós que agradecemos, pude sentir muito mais a presença de Deus nessas palavras do que em muitas pregações que ouvi e vi... não pra vc claro mas a voce por permitir que o Espírito Santo se manifeste! beijo

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