Abandono



          A inquietação do meu ser começou a vir de dentro para fora, como um formigamento na ponta dos dedos que se espalha e vira uma dormência em toda a perna, só que justamente o oposto, eu estava adormecida e fui pouco a pouco sendo desperta. Caí em mim, e vi que tudo ao redor era muito convidativo para que eu fosse adiante, mas ainda era desconfortável ter que pensar em deixar as muletas que me sustentaram por tanto tempo. Se eu precisava delas? Isso já era outra história.. a verdade é que eu havia me acostumado com elas. Pouco a pouco minhas desculpas a respeito de meu passado, das minhas mágoas, da minha condição de humana, foram se somando uma a uma, e quando percebi elas haviam se materializado em forma de muleta. E quer saber? Era fácil demais viver com elas. Causava comoção, poderia simplesmente usá-las como justificativa para qualquer tropeço meu, afinal, quem é que não se compadece de alguém que a vida feriu? Era extremamente lógico para mim continuar a viver assim: limitada a andar muito longe, a me desafiar, a descobrir algo novo. Para quê? Era tudo muito confortável, estático e seguro demais. E eu me perguntava: "Que há de errado nisso?". Alguém dentro de mim me respondeu: "TUDO!". De onde vinha, e porque ousava me confrontar assim? Não sei. Mas a voz disse que tudo estava errado. Busquei mais justificativas em minha memória, e resolvi tirar o foco de mim, afinal, tantas e tantas pessoas também estavam de muletas por aí. Acho que ninguém parecia se importar em viver uma vida limitada, covarde e medíocre sustentando sua existência (ou apenas sobrevivência humana) em cima de desculpas e justificativas. Por que logo eu tinha que mudar de vida? Por que eu tinha que decidir assumir os riscos? Minha limitação de locomoção não me permitia ver se alguém andava livremente por aí, no raio mais próximo todos pareciam não caminhar com as próprias pernas e nem se importar com isso.
          Mesmo com todos esses apontamentos, eu não podia ignorar aquele grito interior que me denunciou. Resolvi enfrentar e ir em frente, se eu mesma não tentasse não poderia descobrir se havia plenitude além daquela rotina enfadonha. Me desvencilhei das muletas, e a dor de um primeiro passo sem elas doeu mais do que qualquer um dos motivos que as construíram. Doía sentir a realidade sob meus pés, doía sentir a verdade a meu respeito, doía perceber que eu sabia andar o tempo todo e que a única responsável por ter entrado naquela condição era eu mesma. Respirei fundo parecendo buscar no ar uma força para não me apegar novamente ao que eu havia acabado de abandonar. Eu precisava prosseguir, precisava agora aprender a caminhar com a força das pernas, havia um caminho pela frente. De início cambaleante, quase me arrastando pelo chão apoiando as mãos no solo. Aos poucos consegui ficar em pé caminhando devagar, eu tinha certeza de que se tão somente não desistisse dentro de dias poderia estar correndo. Viver sem as muletas me fazia correr mais riscos, assumir todos os danos, sofrer mais perdas. Mas a diferença era clara: era viver, e não apenas existir. Era pisar no chão sentindo a terra, era olhar pra frente e ver um caminho imenso a ser percorrido. Minhas muletas não eram as culpadas da minha covardia, era tão somente eu. E a coragem agora parecia me invadir, mesmo perdendo o controle de tudo, mesmo rumo ao desconhecido, o sentido de tudo era muito mais latente e palpável. Meu novo mundo parecia um remédio às feridas interiores, enfrentá-las gerava dor e ao mesmo tempo cura. Eu estava renascendo. Andei aos poucos até perceber que meus pés estavam dentro de um caminho estreito, já aberto por alguém. Não sabia o que me reservava a frente, mas não queria mais aquela realidade antiga. Mirei com o olhar o campo aberto atrás de mim onde eu havia abandonado as minhas antigas pernas, e percebi que logo ali do lado haviam ficado também todas as máscaras. Sem desculpas e sem falsas aparências eu parecia apta a adentrar naquele caminho estreito, onde só havia espaço para eu mesma sem acessório ou adereço a mais. Algumas vozes mais experientes que já trilhavam aquele caminho me sussurraram algumas coisas, uma frase em especial eu gravei bem: "Bem vinda, caminhar com Ele é uma grande aventura." Com ele quem? Eu sabia muito pouco ou quase nada dessa nova vida, mas me parecia que se eu continuasse caminhando uma hora eu ia descobrir. Aventura? A coragem crescente em meu interior já era o suficiente para aceitar. Acho que naquele dia, se isso é lá algo explicável, eu morri e nasci. Tão logo decidi pelo abandono, morreu tudo que não fazia parte de mim. Mas de tudo que perdi, tive certeza de que não se comparava ao que ganhei: permanente e Eterna Vida. No lugar das muletas, eu agora caminhava sobre essa certeza, que daquele dia em diante foi o suficiente para que eu nunca parasse de caminhar.

Lis Guedes, janeiro de 2015.

Imagem: Lis Guedes, Frade-RJ

Títulos


        Na cidade mais quente que já estive na vida, num lugar distante de povo acolhedor, ouvi as palavras de um homem que tinha o coração em chamas. Creio que eu poderia ficar dias e dias a ouvi-lo, parecia que enquanto ele falava um rio de humildade, compaixão, amor, servidão inundava o ambiente, a ponto de fazer nossos olhos inundarem e transbordarem de lágrimas. As palavras eram mansas, calmas, ele até falava pausadamente; mas ao sair de sua boca me atingiam com violência, minha mediocridade humana estava sendo o alvo. Sentia-me bombardeada: minhas desculpas, meu conformismo, meu achar orgulhoso de que já fazia o bastante, minha rasa compaixão estavam em declínio dentro de mim, tudo parecia ruir. 
        A vida daquele homem fazia uma concordância com suas palavras, que as tornavam poderosas. Ele não era um super herói, era um senhor inteiramente humano, de cabelos e barbas brancas, pele avermelhada pelo sol, um nordestino daqueles que faz parecer pra você que a vida é o que há de mais encantador, e não negava que para ele a vida era mesmo um encanto. Seu coração era inteiramente jovem, sua disposição e vigor mesmo com a idade avançada eram de inspirar e animar até o mais jovem que houvesse naquele lugar. Éramos cerca de trinta pessoas o ouvindo, e creio que o sentimento era unânime: não queríamos que aquele homem fosse embora! Sua aula da tarde já estava a acabar, vez por outra eu fitava minha amiga ao lado para me certificar de que não era a única em lágrimas simplesmente por ouvi-lo, todas as vezes que olhei foi contestado que de fato não era.
        Terminada a aula da tarde, procurei-o enquanto ele arrumava algumas de suas coisas na sua mochila de lona, companheira de suas peregrinações. Interpelei-o:
- Pastor Carl..
Mal consegui terminar de pronunciar seu nome e ele me interrompeu:
- Do que me chamou?
- Pastor Carlinhos. - respondi com um certo receio.
- Ah sim, então, pode dizer o que você tem a dizer, aluna.
Ele falou a palavra aluna com uma certa entonação, e eu demorei um pouco a entender o que eu tinha dito de tão errado assim. Ele de fato era um pastor, que aliás, rodava não apenas sua região mas o Brasil todo a falar de suas peregrinações e experiências com missões.. Fiquei mesmo sem compreender o erro, até que ele notou minhas sobrancelhas levemente levantadas e resolveu esclarecer.
- Qual o seu nome? - disse ele me fitando com um olhar gentil.
- Lis.
- Isso é tudo que você é. - Disse com um sorriso generoso como se eu fosse a pessoa mais encantadora do mundo naquele momento. - E eu sou o Carlinhos, isto é o que sou. Não precisa me chamar de pastor, é só um título.
Minha mente pareceu fervilhar, um senso de valor a respeito de quem eu era (simplesmente por ser) sem precisar de títulos parece que veio como um estalo. A vida e as palavras daquele homem não eram fascinantes porque ele tinha estudado muito (embora o tenha feito), porque tinha feito muitas coisas por outras pessoas (embora isso pudesse resumir sua vida), mas simplesmente porque ele era Carlinhos, porque ele tinha descoberto seu valor no Eu Sou, e então agora era uma responsabilidade dele fazer outras pessoas serem tratadas pelo valor que merecem simplesmente por ser alguém.
A conversa seguiu, depois de sua resposta eu dei apenas um sorriso e continuei as perguntas que tinha a fazer sobra a aula. Mal sabe ele que aquele diálogo inicial me roubou o sono. Dias a fio pensando em como algo tão simples faz tanto sentido. Geralmente quando conhecemos alguém perguntamos o seu nome para fins de comunicação, e minha descoberta era de que isto estava errado. O que uma pessoa tem de mais importante a me dizer sobre ela, não é o que estuda, como trabalha, qual sua religião ou cargo, mas quem ela é. 
         Quem eu sou? Era só isso que o Carlinhos queria saber para dialogar comigo me tratando como alguém de extremo valor e importância. Era só isso que o Mestre precisava saber para abraçar o excluso, e curar o enfermo. Era só isso que eu precisava saber para aprender a amar. Rico, pobre, doutor, leigo, judeu, cristão.. tudo que eu precisava era aprender a ver além das roupagens, além da maquiagem, além dos títulos ou falta deles, além da conta bancária e modo de devoção religiosa. Ser-humano, percebi ali na definição que não é necessário mais nada, simplesmente é, e isso é tudo que preciso para ter motivos de amar. De toda sua aula, aquela lição sem dúvidas me foi a mais importante.

Lis Guedes, janeiro de 2015

Imagem: Lis Guedes - Chapadinha/PI

À deriva


Sentia-me um barco sem rumo, e de fato eu o era. Por descuido, desleixo, não sei precisamente, o que sei é que a maré encontrou-me desancorado, e me levou. Tornei-me então apenas um amontoado de madeira rústica, grosseira, suja.. sendo jogado de um lado para o outro. Sem dono, sem nome, sem rumo, aliás, meu rumo parecia ser apenas para cada vez mais longe do cais. Os barcos pintados, revestidos, equipados, pareciam-me seguros e úteis. Que utilidade tinha eu? Nenhuma a não ser cada vez ser mais castigado pelo sol e pelo mar revolto. Não queria ser um barco como outro, não mesmo; mas havia algo que eu queria: saber pra que então alguém teve o trabalho de me elaborar, arquitetar, construir, pregar tábua sobre tábua. Para esse fim? Para que os dias de sol intenso rachassem minhas tábuas e me fizessem estalar? Para noites interruptamente tempestuosas fazendo-me apodrecer e sacudir? Se ao menos eu pudesse parar nas mãos desse inventor novamente, talvez ele faria uns reparos e me colocaria no meu lugar de utilidade. Mas parecia ser tarde demais, percebi que já não apenas estava sendo levado, mas agora minhas corrosões, os sulcos que o sol me causaram e o apodrecimento devido às chuvas me faziam afundar. Das memórias que me restam além desses longos dias de exaustão, haviam relances de algumas boas experiências que vivi. Lembro precisamente de um homem de sandálias de couro bem surradas que por vezes sentava em mim para ensinar as pessoas, de alguns sujeitos atrapalhados que pareciam não confiar nele, de suas pescarias, risadas, creio que nenhum deles se importaria em ter um barco sem uma boa tintura como eu, eu era como eles; mas eu estava longe o bastante para ser resgatado.  Era pelo menos o que eu achava até o sujeito das sandálias de couro se aproximar remando em outro barco, e exclamar:
- Te encontrei!
Creio que toda intensidade da minha frustração anterior foi superada pela minha incompreensão. Não haviam tantos barcos úteis, bons? Por que eu? Por que ele enfrentou essa distância toda apenas para levar de volta ao cais e a utilidade esse amontoado de madeira apodrecida? E mesmo sabendo que ele não ouvia meus pensamentos, parecia que falando ao vento ele me respondia:
- Não investi tanto tempo fazendo esse camarada para ele acabar assim, tem muito trabalho e utilidade para ele, como senti falta.. É tão mais fácil remar nele, sentar bem acomodado e ensinar depois...
Se é que entendi bem, com aquele homem eu tinha minha função, meu lugar, meu valor. Se barcos suspirassem, eu certamente faria aquilo naquele momento. Aquele homem respondia todas as minhas perguntas existenciais. Minha dúvida naquele momento era outra, o que me impediria de voltar a ser sem rumo, se bastou um vento para me levar anteriormente? Sei que com ele eu estava seguro, mas me amedrontava a possibilidade de ser mais uma vez levado mar à dentro sozinho. Reconhecia-me incapaz, incapaz de salvar a mim mesmo, de manter-me seguro, incapaz de sobreviver longe do dono daquelas sandálias surradas. Fomos chegando à margem, ele desceu do barco e foi me puxando pela corrente que tinha pregado em mim. Pegou a ponta daquela corrente e prendeu em um prego bem firme. Não sei se foi o mesmo prego que mais tarde furou seus pés e mãos, mas uma coisa ficou clara naquele dia: minha incapacidade pode ser bem assegurada no poder de seus cravos. Mesmo que ele não estivesse ali presencialmente por alguns instantes, a marca visível e poderosa de seus cravos poderia-me manter seguro do perigo até sua volta.

Lis Guedes, janeiro de 2015

Imagem: Lis Guedes, Lagoa de Imboassica - Macaé/RJ